O que o Amazonas pode aprender com a PI polonesa “The Witcher”​

PEQUENAS IDEIAS, GRANDES NEGÓCIOS

Polônia, meados de 1980, durante os últimos anos sob o regime soviético, o então comerciante Andrzej Sapkowski – grande fã da ficção fantástica – resolve escrever seu próprio conto para participar de uma competição da revista Fantastyka, uma publicação local de ficção. Inspirado pela mitologia eslava, especialmente por uma lenda do folclore polonês de um sapateiro que derrota um dragão, ele adapta à história original três elementos: 1) O sapateiro é um caçador de monstros profissional; e 2) Ele possui poderes sobrenaturais; e 3) O dragão é trocado por um mundo fantástico detalhado repleto de elfos, anões, magia e monstros.

Andrzej Sapkowski
Andrzej Sapkowski

A brincadeira lhe rendeu o 3o. lugar na competição e uma demanda por mais contos desse novo mundo. E logo Sapkowski tinha uma legião de seguidores poloneses que se apaixonaram por seu universo. Ao fim da década as aventuras do bruxo Geralt de Rívia já haviam sido contadas em uma saga de cinco livros, e não demorou muito para que outros criativos locais adaptassem o conto para os quadrinhos, jogos de cartas, filmes e até mesmo uma série de TV inspirada pelos personagens.

Em 2003 a desenvolvedora sediada em Varsóvia, CD Projekt, fundada em 1994, começava a negociar direitos autorais da obra com o autor, lhe oferecendo royalties encima da adaptação. Sapkowski à época pediu apenas que lhe fosse pago uma única soma em um valor abaixo de $10.000,00. O primeiro jogo intitulado apenas “The Witcher”, lançado em 2007 se tornou um grande sucesso com o passar dos anos, seguido de “The Witcher 2: Assassins Of Kings”, lançado em 2011, que rendeu uma famosa menção de Barack Obama quando este recebeu uma cópia das mãos do então primeiro ministro polonês Donald Tusk ao presidente norte-americano durante um encontro em Varsóvia, Polônia, naquele mesmo ano.

Nas palavras do ex-presidente norte-americano:

“A última vez que estive aqui, Donald Tusk (primeiro ministro da Polônia) me deu de presente um game desenvolvido neste país que ganhou fãs em todo o mundo, The Witcher.

Confesso que não sou bom em video games, mas já me disseram que este game é um grande exemplo da posição da Polônia na nova economia global.

é uma homenagem aos talentos e trabalhadores do povo deste país bem como da administração sensata dos líderes como o primeiro ministro Tusk.”

US President Barack Obama shakes hands with Polish Prime Minister Donald Tusk prior to a meeting in Warsaw, Poland, in 2011. AP/Alik Keplicz
Barack Obama e Donald Tusk, na reunião de Varsóvia, Polônia, em 2011 | AP/Alik Keplicz

A APOTEOSE

Foi em “The Witcher 3: Wild Hunt” (2015), que a CD Projekt impressionou o mundo inteiro com o nível de complexidade técnica presente naquele jogo. Além disso, a obra contou com 257 prêmios de melhor jogo em diversas publicações e eventos e de quebra foi um sucesso financeiro, tendo vendido cerca de 10 milhões de cópias ao redor do globo. Hoje a rentabilidade total da trilogia de jogos gira em torno dos $250.000.000,00 e, dada a natureza continuada e perene da comercialização de mídias digitais, só podemos esperar que esses números aumentem nos próximos anos.

No último dia 20 de dezembro a plataforma de streaming Netflix lançou a adaptação dos livros de Sapkowski em uma série estrelada por Henry Cavill na pele do bruxo Geralt e grande elenco, estendendo ainda mais a popularidade da narrativa polonesa baseada na mitologia eslava para públicos que não consumiram nem os livros, nem o game, mas que agora – repetindo cases e efeitos colaterais de franquias passadas como O Senhor dos AnéisHarry Potter, Game Of Thrones Star Wars – certamente terão interesse em consumir estes conteúdos, visitar as locações, conhecer a cultura desse país e gerar mais lucratividade para os envolvidos nestas produções.

O QUE ESSE CASE POLONÊS NOS ENSINA?

Tendo sua principal base econômica ancorada na indústria de manufatura, seguida dos setores de comércio e serviços, no estado, Manaus hoje é palco de um amplo debate acerca de novas matrizes econômicas para a região, considerando às constantes ameaças ao modelo ZFM. A indústria 4.0 está em advento, e muito me assusta pensar que ainda temos um longo caminho a percorrer a nível educacional e social para conservar ao menos um valor aproximado da taxa de empregabilidade atual dentro dos novos contextos de mercado e expertises requeridas pelos gurus da nova economia.

É necessário que olhemos para nossa população em um nível além do técnico e do operacional, além da capacidade de trabalho manual, do talento para venda ou da qualidade da prestação de serviços, e que adentremos uma camada mais profunda e cultural do que nos torna Amazonenses. Todos sabemos o valor da região em que vivemos e de todo o potencial econômico, social e político que temos em nossas mãos, todos sabemos (de mal a mal) uma coisa ou duas de nossa história que por décadas a fio buscou emular um estilo de vida europeu às custas do trabalho duro de nossos ancestrais.

Além das mitologias grega, egípcia, nórdica e – mais recentemente popularizada – eslava, já passou da hora de explorarmos a nível épico e grandioso a nossa mitologia. Enquanto para os mais céticos ela permanece sendo comercialmente frágil por não termos dragões, anões, elfos e orcs (nada contra essas raças), precisamos ser resistência e provar por A+B que na verdade nossa criatividade é o ingrediente secreto que é capaz de dar a toda essa mitologia o valor e a magnitude que ela merece.

Acredito firmemente que é por meio dos jogos digitais que vamos conseguir emplacar o tema por meio da pauta tecnológica. É por meio dos jogos que conseguimos associar o saber tradicional com a disrupção digital. É unindo a criatividade pura e o escapismo com a tecnologia que conseguiremos incentivar centenas de protagonistas amazonenses a solidificar uma matriz econômica alternativa de baixo impacto socioambiental.

Nossos saberes tradicionais e nossa cultura popular são uma grande fonte de renda, mas por desatenção, descrença ou por puro preconceito, estamos deixando grandes talentos locais se dispersar mundo afora, temos grandes quadrinistas, escritoras e escritores, ilustradores e musicistas partindo dessas terras, e ainda não estamos fazendo o suficiente para retê-los. Vivemos em tempos com menos comerciantes como os da época de Andrzej Sapkowski… Mas temos uma vastidão de industriários, vendedores, prestadores de serviço, acadêmicos, professores, artistas de rua, entre outras pessoas com grande capacidade intelectual, que podem estar obscurecidas no modus operandi da grande engrenagem que é o Amazonas.

É por meio dos jogos que conseguimos associar o saber tradicional com a disrupção digital. É unindo a criatividade pura e o escapismo com a tecnologia que conseguiremos incentivar centenas de protagonistas amazonenses a solidificar uma matriz econômica alternativa de baixo impacto socioambiental.

NÃO TEMOS MÃO DE OBRA ESPECIALIZADA

É o que alguns dizem, e não teremos mesmo enquanto não acreditarmos, não valorizarmos o profissional de música e de arte, ou diminuirmos os esforços de alguém sem formação ou experiência que está iniciando sua caminhada para entrar para esse mercado.

Em um momento de abundância tecnológica onde a informação está mais acessível do que nunca, plataformas de ensino online gratuito e outras pagas, com cursos de 40+ horas de duração em expertises antes restritas a uma classe social de maior poder aquisitivo, hoje estão nas mãos de qualquer um que possua um smartphone e acesso à internet. Sim, se você tem acesso à jogos como Candy CrushFree Fire e Helix Jump, você também tem acesso à educação de alto nível.

Marcin Iwinski e Michal Kicinski: os fundadores da CD Projekt Red (Foto: Reprodução/Youtube)
Marcin Iwinski e Michal Kicinski, fundadores da CDProjekt

Esta não era a realidade dos fundadores da CD Projekt: Marcin Iwinski e Michal Kicinski, que idealizaram a adaptação gamificada da obra de Sapkowski. Se hoje algumas pessoas ainda consideram difícil o acesso à informação, em 2003, quando a Polônia entrava em sua segunda década de uma economia de mercado pós União Soviética, era com certeza muito mais difícil.

Antes de questionarmos a inexperiência da nossa mão de obra local, devemos lembrar que Iwinski e Kicinski não eram desenvolvedores quando começaram a desenvolver o primeiro The Witcher, de forma semelhante, os 80 profissionais contratados por eles para o ambicioso projeto também não eram experientes no mercado de games. A lição que extraio desse case é esta: para que se forjem iniciativas robustas e sólidas em termos de novas matrizes econômicas, é necessário que se confie e acredite no povo e no poder que a inspiração e a cultura podem conferir ao empreendimento.

O mesmo pode ser trazido para nossa realidade. Você não precisa ser um desenvolvedor, designer, modelador, artista 3D, nem tampouco ter quaisquer experiência para entrar no mercado de games. Essa afirmação se faz especialmente real hoje, quando contamos com o suporte de ICTs como Fundação Paulo FeitozaSídia e Softex, que tem a missão de fomentar o empreendedorismo digital e incubam/sediam desenvolvedoras com ampla experiência no mercado global, como por exemplo a Petit Fabrik, que hoje está rodando no Amazon Forest Game Studio.

Da mesma forma, hoje temos referências de sucesso no universo de desenvolvimento de games, desenvolvedoras independentes como a Ludic Studios e a Flaying Saci, hoje temos know-how valioso a ser compartilhado sobre esse mercado. E creiam-me: estou para ver comunidade mais integrada e autenticamente colaborativa que a de jogos digitais.

Temos um privilégio que o pessoal da CD Projekt não teve quando começou, e precisamos aproveitar isso ao máximo. Mesmo que o momento seja sem precedentes, onde o acesso aos protagonistas é mais simplificado do que nunca, a maior e mais valiosa parcela de responsabilidade ainda é e sempre será de quem decide empreender nesse universo.

TEM TUDO PRA DAR CERTO, SE VOCÊ LEVAR A SÉRIO

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Cartaz de Snakeborn, título em desenvolvimento no Amazonas

A caminhada de desenvolver jogos digitais não é fácil, e creio eu que jamais será, entretanto é recompensadora se levada a sério por gente dedicada e comprometida. Hoje, por exemplo, na Flameseed Productions, desenvolvedora indie que integro, estamos desenvolvendo nossa primeira propriedade intelectual original há cerca de 2 anos com um time robusto composto por 9 profissionais voluntários que tem seus empregos e ocupações informais em áreas divergentes de jogos digitais, mas que detém um conhecimento extremamente valioso em suas especialidades que vão desde produção musical, até desenvolvimento em C#.

Uma grande parcela do sucesso de qualquer empreendimento é a dedicação, a ética profissional, o foco em resultados e acima de tudo a capacidade de ser humano mesmo nos momentos de maior estresse que um time ou um desenvolvedor solo possa enfrentar. Isso se paga no longo prazo com resultados reais que se materializam e servem de combustível para criar o próximo passo do projeto e assim seguir avançando.

Amazonenses podem e devem se empoderar dos debates que permeiam os jogos digitais, pois eles já vem representando a maior fatia do mercado de entretenimento global por alguns anos consecutivos. Esta tendência, a tendência do escapismo, de fugir do mundo por meio de livros, hqs, filmes, música e especialmente por meio das experiências máximas de imersão absoluta que são os games, só tem se provado cada vez mais crescente. Aproveitem isso, se apropriem disso, façam disso um negócio e acima de tudo, se conectem.

Cabe a você que está interessado em seguir essa jornada buscar conhecimento, conectar com a comunidade e se especializar. Uma só andorinha não faz verão… Exceto se a andorinha em questão for a Ciri, protegida de Geralt em The Witcher.